1 de novembro de 2015

Ambient Comics/Infusion. Nadine Redlich/Pascal Matthey (Rotopolpress/Habeas Corpus)

Será possível ter uma categoria constituída de uma só instância? Poderá uma nomenclatura criada para um título alertar-nos para outros exemplos anteriores que passam a fazer parte dessa mesma categoria? Poderá, ao isolar-se uma prática corrente, subsumida a programas mais convencionais de narratividade e representação, re-fundi-la de um modo mais autónomo? (Mais) 

Não estando seguro de nenhuma destas respostas, não deixa de ser curioso detectarmos dois gestos recentes que parecem perseguir a mesma inclinação. Em Understanding Comics, concorde-se ou não com as questões de fundo e estruturalizantes de Scott McCloud, o autor instituiu de modo famoso a coordenação imediata entre as vinhetas numa tipologia de transições. A primeira, a que chamara “momento-a-momento”, junta vinhetas que dão conta de uma passagem, à partida, ínfima de tempo, dando a ver uma microacção, uma transição de um estado para outro num intervalo diminuto de movimento. As mais das vezes, essas transições são empregues em sequências mais normalizadas (usualmente “acção-a-acção”, “objecto-a-objecto” ou “cena-a-cena”) e, curiosamente, servem para diminuir o tempo de modo assinalável, levando a uma focalização mais particularizada de algo dramático: a trajectória de uma bala, a queda de uma personagem, um objecto quebrando-se. A título de exemplos, recordemo-nos do comboio parando em “The Master Race”, de B. Kriegstein, o frasco de perfume em Watchmen, ou a bala de Hotel Harbour View, de Sekikawa e Taniguchi. Mas para além das relações imediatas e contíguas na redução (necessária) de McCloud, também poderíamos pensar em cenas “à distância”, como a porta a fechar em Tunsgtênio, de Quintanilha.

Apesar de McCloud não o discutir, poderá eventualmente estar a pensar nas relações que, no campo da narratologia, Genette havia fundado em Discurso da narrativa, quando, ao discutir a duração, relaciona o tempo da história (ou o tempo diegético), medida por unidades cronológicas (“quanto tempo demora esta acção a ocorrer”), com o tempo da narrativa (“o tempo que demora a contar a acção”). No caso da banda desenhada, a figura mais comum é a da elipse, os saltos entre determinadas acções marcadas eventualmente pelo espaço em branco entre vinhetas, apesar de existirem casos em que se exploram intervalos menores, precisamente o que é assinalado pelas transições “momento-a-momento”, as quais, de modo abstracto, se aproximariam do que Genette chamava de isocronia, onde existiria uma coincidência total entre o tempo da história e o da narrativa: é o que sucede usualmente no teatro ou na imagem em movimento, se bem que isto seja discutível e necessitasse de maior precisão.

Seja como for, entender-se-á que estas transições são usualmente empregues de modo esparso, para assinalar uma acção particular. Não se constroem histórias somente com essas transições, como se buscasse uma qualquer sincronia entre o acto da leitura e o da diegese. Seria extremamente limitado o escopo do possível.

Mas tendo em conta as experiências passadas de explorar os “momentos aborrecidos da vida” (numa curva que abarcaria Clowes e Ware, Breccia e JamesSturm), ou até momentos de stasis numa história mais convencional (de Kevin Huizenga a Mike Mignola), é natural que encontremos na banda desenhada mais alternativa, experimental, de ensaio, tentativas de auscultar os limites dessa duração temporal. A autora alemã Nadine Redlich publicou duas publicações, Ambient Comics, de umas dezenas de páginas, em que cada uma delas se constitui como uma história de uma prancha singular. Todas essas pranchas apresentam seis vinhetas numa grelha regularíssima, em que até a linha divisória é minimal. A cena mostrada nessas imagens é absolutamente centralizada, sem quaisquer alterações de ângulos, proximidade do objecto, e mesmo os objectos “capturados” no interior dessa cena apresentam apenas um ou dois pontos de movimento (sejam, em si mesmos, fenómenos físicos simples, como a queda de um corpo pela força da gravidade, ou complexos, como a transformação físico-química de elementos).

Por seu lado, Pascal Mathey criou uma pequenina publicação, a que deu o nome de Infusion, e no qual explora algumas relações que já havia experimentado no seu fanzine Soap, e noutros projectos, mas que aqui se parece aparentar com os livros de Redlich. O título é claro: o “protagonista” é uma chávena de uma infusão, e mesmo que ela não esteja no centro das imagens, é como se se sublinhasse o tempo que o protagonista humano, sempre fora de cena, habita, usa e emprega enquanto beberrica essa bebida: a água ferve, a pessoa trabalha, trata de um cacto, despeja o lixo. A transição das cenas é lento, e concentrado, apresentando-se também em grelhas inexoráveis.

Desta maneira, cada “história” de Ambient Comics pode ser descrita numa só linha, com um sujeito e um predicado: “um comboio passa”, “um bolo coze”, “um baloiço baloiça”, “alguém espreita pelas persianas”. De um ponto de vista estritamente clássico, de uma narrativa normalizada, com personagens, uma intriga, os elementos de um género, uma unidade espácio-temporal complexa, etc., poder-se-ia dizer que “nada se passa”. Nem sequer estão instaladas no meio de algo maior que lhes desse um significado “maior”. Mas isso não é verdade. Passam-se essas acções. Certo, nenhuma delas é particularmente espectacular, fazem mesmo parte da mais banal das nossas experiências, mas é por isso mesmo que elas ganham uma premência curiosa, uma vez que nos obrigam a diminuir o tempo para apreciar essas mesmas acções, nelas mesmas, nas suas características próprias.

Regressando a McCloud, recordemo-nos que outra das transições, “sem tempo”, era a de “aspecto-a-aspecto”, que criava a ideia de uma focalização múltipla que nos ajudava a construir um espaço, ou melhor, um ambiente no qual se instalaria uma acção posteriormente apresentada. Nestes casos, os ambientes “não servem” a nada ulterior ou exterior a eles mesmos. Há, de novo, essa concentração na realidade em que elas mesmo insistem. Estas transições, tal como o seu uso normal, diminuem o tempo (que corre, e passa), mas uma vez que esse tempo não faz parte de uma cadeia ou economia maior, torna-se um tempo desagregado, que se espalha, tal como quer a palavra “ambiente”, que deriva do verbo latino ambire, “andar à volta” ou “dar a volta”. Um movimento circular que (pode) não leva a lado nenhum, a não ser aprofundar a relação com esse espaço percorrido.

Mas se insistimos naquele aspecto em relação à duração, também é notório como elas são todas diferentes. O tempo de um bolo cozer no forno será necessariamente distinto do percurso do Sol nos céus para fazer rodar uma sombra, e o tempo que leva a espuma de uma caneca de cerveja a desaparecer não é igual ao da passagem de um comboio moderno, tal como não o é a passagem do vento sobre um milheiral, ou um baloiço. Existem acções que são operadas por seres humanos, e outras pelas forças da natureza, e mesmo que isso não implique uma diferença de cronologia, sê-lo-á seguramente de intenção e controlo dessa mesma duração, tornando a própria observação dessas acções ora tranquila ora súbita. A questão da excitação não existirá, pois esse dramatismo vê-se subtraído neste absoluto foco nas acções representadas. Não vemos a água a ferver na chaleira, como no caso de Infusion, de Matthey, no seio de uma outra qualquer azáfama maior que ocorrerá na cozinha, em casa. Apenas a água a ferver, e mesmo assim oculta na chaleira: apenas vemos o fumo a surgir, a luzinha a apagar. E se no caso das cinco vinhetas que mostram as imagens alterando-se no ecrã do computador podem dar uma ideia de movimento – temático, visual, plástico – ao mesmo tempo remetem a um tempo bem alargado, de trabalho lento.

Por isso, quer os tempos dilatados quer os tempos curtos são todos tratados neste leito de Procrustes, e o resultado é sempre idêntico. Um tempo tranquilo, silencioso, ambiental, que nos permite cheirar o chá.

Nota final: agradecimentos a P. Matthey, pela oferta da sua publicação.

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