13 de agosto de 2015

All you need is kill. Takeshi Obata et al. (Devir)

Faz muito sentido da parte da editora em lançar os dois volume de All you need is kill ao mesmo tempo, uma vez que a economia e concentração desta narrativa, assim como a velocidade da sua complexificação e resolução, convida a uma leitura rápida. Se a divisão por capítulos se justificava na sua serialização em revista, na sua ausência no nosso mercado, a sua (re)leitura em livro é a opção certa. (Mais)

Originalmente, este projecto surgiu como uma novela escrita por Hiroshi Sakurakaza, pertencendo a um género particular conhecido por “light novel”, textos literários escritos com um público muito jovem em mente e seguindo toda uma série de “regras” ou expectativas formais e editoriais. Sendo uma delas a inclusão de ilustrações, dinâmicas ou ambientais, no caso presente criadas por Yoshitoshi Abe. O Japão, tendo um mercado literário estratificado como poucos (o que não significa que não haja crossovers, mas as categorizações são mais claras), procura munir cada sector com uma dieta rigorosa e constante de material, e este é alimentado sobretudo com literatura associada (ou “tie-in”) a RPGs (de tabuleiro ou digitais). Se All you need is kill não está associado a nenhum jogo específico, ele está imbuído até ao tutano nessa mesma cultura. A própria premissa central da história – a que, a cada morte, se regressa a um determinado “ponto de partida” que permite passar novamente pela jogada e, assim, melhorá-la, superando o obstáculo – é não apenas um mecanismo existente em alguns jogos (respawn: Quake, Dark Souls) como até uma fantasia na vida (“se pudesse voltar atrás...”, “se soubesse que era assim...”). Na verdade, podíamos mesmo pensar que o livro é mais sobre essa fantasia de cheat codes do que de verdadeiro crescimento interior. Afinal de contas, se para se ser um herói basta falhar vezes sem conta e se repetem gestos, não é propriamente treinar-se para se estar alerta, conscientemente, em novas situações.

O sucesso da novela poderá medir-se não só pela quantidade de adaptações e a que foi sujeita – esta de mangá, uma versão em comics (absolutamente desprezível), e, claro está, a famosa adaptação cinematográfica realizada por Doug Liman, Edge of Tomorrow, com Tom Cruise – mas é sem dúvida graças a essas transposições que a sua fama vai sendo construída. A versão mangá aparentemente segue mais de perto a intriga e estrutura narrativa original da novela de Sakurazaka, sobretudo no que diz respeito aos pontos nevrálgicos da acção – bem diferentes do filme, que institui finais felizes, resoluções finalíssimas, etc. – e os “desvios” em profundidade das biografias das personagens em relação à linha temporal, ou melhor, às várias linhas temporais que se vão acumulando linearmente na rota de combate e vitória contra os alienígenas invasores da Terra, com quem combatem, ou Mimics. Haverá liberdade em relação ao texto original, seguramente (que não lemos), mas não só é isso expectável como saudável, uma vez que as adaptações devem procurar um qualquer grau de transformação que torne a matéria “sua”. Temos portanto um equilíbrio interessante entre as partes de acção (os combates) e encontro com os Mimics, os flashbacks biográficos, e momentos de exposição explicativa (mas não demasiados; na verdade, há mesmo alguma ausência de mecha porn, techno-babble ou outras intervenções similares: o filme complica muito mais a dinâmica das criaturas). Isto cria secções claras ao longo do livro, como vimos, que além de ser dividido fisicamente em dois volumes (presumimos nós, apenas para poder manter a estandardização dos tankonbon e arrumá-los na mesma prateleira que os demais) está dividido em vários capítulos.

O livro tem como figura central o jovem soldado Keiji Kiriya, o qual, apanhado na malha do loop temporal provocado pelo embate com um dos Mimics-transmissores, repete sempre o trecho de tempo e acções que dão início à história até às suas “mortes”. Cada um desses ciclos são chamados de “voltas”, e é no momento em que elas se interseccionam com as de Rita Vrataski que se começa a tecer a possibilidade de uma vitória definitiva sobre os invasores. Apesar daqueles tais “desvios” indicados, a intriga não deixa de ser concentrada e conduzida (afinal de contas, estamos perante um projecto com 400 pranchas – o que é usualmente “curto” nas sagas da banda desenhada japonesa) na direcção da resolução do problema, e até o uso de elipses e transições rápidas aceleram o processo de avanço. Ao contrário de muitos outros projectos que procuram estender ao máximo a tensão e a protelarem os acontecimentos (pense-se em Blame!), All you need is kill é cinético ao máximo. O próprio trabalho de composição – pelo que se entender cumprido, pelo menos em parte, por Ryosuke Takeuchi, indicado como autor do storyboard – ajuda nessa dimensão. Existem momentos por vezes confusos, dado o uso de estratos espaciais que não seguem os arranjos mais normalizados da banda desenhada ocidental, “naturalista” e “lógica”, mas estratos dramáticos, emocionais, e variações de planos que sublinham o melodramatismo do evento (os close-ups dos olhos recordam por demais a escrita de Light em Death  Note), mas isso é condição necessária neste género. Tudo serve para essa leitura rápida, concentrada na dança (algures fala-se de “tango”) entre os dois personagens, no centro do conflito.

No entanto, a distribuição dos papéis e/ou graus de protagonismo e acção é diverso entre o filme, a mangá e a versão comic. Repare-se como na capa da versão norte-americana o protagonismo é dado de imediato ao protagonista masculino. Nas duas capas da mangá procura-se um equilíbrio distributivo, apenas compensado pela diferença na atitude dos rostos das personagens. Mas no interior da mangá há bastantes momentos em que se percebemos estar a seguir uma fantasia masculina, mesmo que se deseje ver em Rita uma mulher independente, forte e autónoma: se não há praticamente personagens que mereçam essa descrição para além de Keiji e Rita (mas que, por serem desenhadas por Obata, ganham algum grau de personalidade diferenciada na mangá), as poucas personagens femininas que surgem são sempre sexualizadas de forma hiperbólica, com grande destaque para Rita, claro, a cozinheira e até mesmo a engenheira mecânica (de uma forma típica pelo lado da “nerd inocente”). Talvez seja um paradoxo, ou pelo contrário sublinhe as regras do jogo nessa dimensão, mas essa sexualização é por vezes des-sexualizada, como quando na cena obrigatória de chuveiro o corpo totalmente nu de Rita não tem nenhum dos traços que tornariam o seu corpo concreto e humano – mamilos, pêlos púbicos, etc. -, transformando o corpo numa mimese do da Barbie.

Em termos visuais, e como é de esperar, como tinha ocorrido já em relação a Death Note e tantos outros (Dragon Head, La Musique de Marie, etc.), os protagonistas – mas as personagens quase todas, independentemente da idade – são representados de modo nubilíssimo, sobretudo Keiji e Rita, obviamente, que preencherão as “funções de leitor” de projecção do leitor (masculino) e do desejo (fantasia feminina). Todavia, sendo essa a regra deste campeonato “leve”, e All you need is kill é leve de uma maneira directa, descomplexada e perfeita, compreendendo-se que não se está a explorar propriamente uma obra de contornos críticos em termos sociais, mas antes uma desbragada fantasia, o seu emprego é, digamos assim, justo e apropriado. Rápido, concentrado, eficaz e dinâmico. Como um jogo bem passado.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos dois volumes.  

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