23 de março de 2015

Blacksad: Amarillo. Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido (Arcádia)

Em várias circunstâncias já o havíamos afirmado mas deixamos aqui por escrito pela primeira vez que Blacksad é uma das melhores séries de banda desenhada que nos deixavam indiferentes. O que queremos dizer com isso é que reconhecemos nela determinadas qualidades, sobretudo do ponto de vista técnico e formal, que a tornam um excelente exemplo de uma obra que preenche todos aqueles requisitos de uma banda desenhada do ponto de vista das suas mais usuais especificidades. A indiferença deve-se ao facto, mais subjectivo, empírico, emocional, de que o cruzamento entre o noir e a antropomorfização, os temas-cliché do cinema norte-americano dos anos 1930 e 1940, a economia narrativa em torno da personagem detective não constituem de forma alguma um interesse particular para nós. Em muitos aspectos, Blacksad é uma obra sem grande “ruído”, e talvez seja por isso que não nos estimula grande paixão. (Mais) 

Aquela mestria técnica tem a ver com o facto de Canales e Guarnido tirarem partido de todas as formas de constituir informação através, não apenas do texto, mas das imagens e da forma como elas são compostas e articuladas. Repare-se como a primeiríssima página tira partido de não termos acesso às relações entre as personagens, mas tampouco ao rosto daquela que conheceremos como Abraham, como o establishing shot é feito ao contrário, do particular para o geral, e a expectativa antes de chegarmos à segunda página é a de tragédia e crime. E na terceira página, depois de uma ágil apresentação e bailado de forças entre Abraham e Chad, estamos inteirados sobre o (des)equilíbrio da relação de ambos.

No fundo, estas técnicas correspondem àquilo que teóricos do cinema clássico de Hollywood chamam de “estilo invisível”, ou continuity editing, isto é, o trabalho de montagem de todos os elementos disponibilizados nas “imagens” (captadas na película, criadas no computador, pós-produzidas, etc,) que os torna todos articulados numa ilusão de transições suaves no que diz respeito aos gestos, espaços, tempos, tons, expressões dos actores, som, etc., consequentemente construindo a ideia de um mundo contínuo, coerente, lógico, enfim, “real”.

Muito discutivelmente, pois o próprio conceito de “continuity editing” é criticado a partir de várias perspectivas teóricas – afinal de contas, essa expressão junta duas das actividades que são intrínsecas à própria materialidade e linguagem do cinema - , que complicam esta modelização simplista, poderíamos dizer que um dos maiores expoentes desse cinema é Hitchcock, tal como na banda desenhada seria Hergé. Claro está que esta é não apenas uma comparação falha, como até mesmo patética pela sua hiperbolização totalmente descontextualizada da história ou até de uma argumentação analítica. Todavia, aquilo que pretendemos com esta estratégia discursiva, temporária, não é tanto atingir uma “verdade absoluta” (impossível), como apenas uma jogada para chegar a uma ideia relativamente corrente de que existirão textos de “estilos invisíveis”, em que tudo é criado de uma maneira para nos fazer esquecer estarmos perante uma ilusão, tal como ocorrem nos filmes de Hitchcok ou n’As aventuras de Tintin. Repetimos, isto é uma ilusão apenas, se bem que optimamente construída, contrastando com projectos tais como os de, por exemplo, Chris Ware, Edmond Baudoin, Tiago Manuel, Lynda Barry, e tantos outros, em que a superficialidade, a feitura do texto não “desaparece” sob a narrativa (uma das “tensões” específicas da banda desenhada teorizadas por Charles Hatfield).

Compreenderão que, a cada passo deste tipo de pensamento, são cada vez mais os obstáculos a uma progressão suave desses argumentos. Os escolhos são muitos. Mas aceitemos a ideia de ilusão, apenas para avançar. É nesse sentido que os livros de Blacksad são um excelente exemplo do domínio de todos os instrumentos disponíveis pela banda desenhada: desde a figuração à cor, passando pela focalização, à composição, diálogos e estruturas narrativas, ângulos e uso de onomatopeias e emanata, etc.

A história em si é fraca na sua estrutura. As referências são relativamente simples e claras, estando em torno da beat generation e da forma como aliavam certos comportamentos anti-sociais e uma descoberta de uma espécie de genuína identidade interna, individual e americana. Chad tem alguns laivos de Jack Kerouac, até ao pormenor do rolo do seu novo romance; o abutre Billy Sorrows poderá ser um contraponto de William Burroughs, da eufonia do nome à fisionomia ao episódio do tiro ao alvo; Abraham Greenberg uma espécie de mistura entre Allan Ginsberg e Ken Kesey, etc. No entanto, a exploração da camada literária, apesar da brevíssima referência a Artaud, não se abrirá jamais de uma forma produtiva. Apenas existem como referência, e tudo o resto é superficial. Também a música e a fotografia, graças à máquina deixada por Weekly, se tornam apenas laivos de decorativismo (ainda que haja uma tentativa de as tornar significativas com as páginas de guarda, sem adiantar nada à intriga), e jamais de interpelação da diegese. Continuam os piscares de olho a outras bandas desenhadas, como no caso da capa da Mad, traduzida com humor para o mundo particular destes animais.

Todavia, o desequilíbrio principal está na relação do protagonista – que neste livro quase deixa de o ser – e as restantes personagens, e o modo como as várias linhas de entrosam umas nas outras. Blacksad acabará por se cruzar apenas por acaso com estas personagens, depois do crime cometido, e todas as peças – que parecem demais, na verdade, envolvendo um circo ambulante com dívidas, uma gangue de bikers, uma herdeira milionária em fuga, dois investigadores com métodos pouco justos, um advogado (hiena, para que a metáfora não seja demasiado complexa) em busca de soluções fáceis, etc. – estarão no seu caminho como pó, não existindo na verdade uma concatenação e articulação entre elas “por necessidade”. As coisas sentem-se algo como sendo ex machina.

Repare-se como há um número talvez idêntico de planos em ângulos oblíquos e inclinados, dramáticos, tais como ocorriam nalguns dos títulos anteriores, mas sem a mesma elegância ou urgência associada aos eventos. Recordemos aqui uma leitura crítica em torno de um dos primeiros volumes da série, que tornava isso claro. Não é que os momentos de gestão dos silêncios, os desvios de atenção para que o leitor preste atenção a uma coisa enquanto outra se passa, os saltos de momentos mais dramáticos para chegarmos a um efeito mais irónico, chocante, ríspido, não estejam lá, mas parecem ser colocados somente por formulação, e não nascendo da integridade da história. Como se se tratasse de um daqueles formulários de argumento à la screenwriting de Hollywood preconizados por dezenas de manuais, e não um edifício que desabroche de dentro.

Enfim, o que acontece é que a personagem não tem agência. Todas as suas tentativas de acção são até goradas, e mesmo que seja esse o objectivo dos autores para este volume, isto é, desarmá-lo de alguma maneira, isso é algo exagerado ao ponto de o esvaziar.

Seja como for, a beleza das aguarelas de Guarnido continuam presentes, assim como o seu paciente burilar das expressões das personagens, que tiram partido como poucos artistas das potencialidades expressivas da banda desenhada animaliére, encontrando-se uma união perfeita entre o que é possível tirar das expressões humanas, das dos animais e, claro está, daqueles contornos que se devem à indústria e linguagens específicas da banda desenhada e da animação. Se há todo um conjunto de referências a que ambos os autores são devedores, eles tiram partido delas da melhor maneira possível. Pensamos que é apenas a nível da narrativa, se nos for permitida essa violência que disjunta matérias que não têm existência autónoma, que Blacksad: Amarillo acaba por não funcionar da melhor maneira. Contudo, independentemente desse juízo de valor, continuamos a ter aqui qualidades conquistadas no campo do mainstream.

Uma última nota sobre um tema específico. Se Artic Nation já tinha lidado de forma directa – e narrativamente brilhante - com a questão do racismo nos EUA nesta época, este livro não deixa de lhe fazer referência, numa cena com um papagaio, mas há algo de superficial e mal gerido nessa cena, sobretudo tendo em conta todos os outros acontecimentos em que a questão nem surge. Pois se se quer seguir uma lógica que espelha a da experiência humana e histórica, então deveria ter havido uma palavra com a gangue dos motociclistas…

A presença desta série e o totalmente meritório sucesso comercial que teve entre os fãs e a crítica é justificação suficiente para que haja esta circulação na nossa língua, como é evidente. Mesmo tendo em conta a qualidade atingida por volumes anteriores, Amarillo não lhes segue os passos. Todavia, ainda estamos perante uma das séries mais bem construídas em termos de realização do seio do mainstream europeu.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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