2 de fevereiro de 2015

Seis livros académicos colectivos.

Para terminarmos esta leva de blocos dedicadas de forma algo superficial a vários dos volumes académicos que têm surgido nos últimos tempo, este post agrega seis títulos cuja característica comum é o facto de serem colectivos, entre antologias de textos, a actas de conferências e projectos oriundos de chamadas de artigos sob um qualquer domínio. No entanto, fica já a promessa de que, graças a vários contacto e colaborações planeadas, revisitaremos alguns destes títulos de maneira mais cabal e ponderada. O tipo de foco desta pilha e, arriscamo-nos a dizer, peso e importância, é variado, mas todos eles, como sempre são prova acabada de que o edifício dos Estudos de Banda Desenhada não é de forma alguma “incipiente”, “novo” ou até mesmo “jovem”, como veremos. (Mais)

Comics as History, Comics as Literature. Annessa Ann Babic, ed. (Farleigh Dickinson University Press) Esse tipo de juízo para com a área da abordagem académica da banda desenhada ainda se encontra cheia desse tipo de obstáculos e escolhos, por vezes alimentados por ela mesma. O pequeno texto descritivo deste volume, por exemplo, ainda insiste na ideia de que existem “poucos recursos actualmente que demonstrem os aspectos transdisciplinares da banda desenhada”, o que é um terrível serviço para a bibliografia já existente. Claro está que se pode dizer que é apenas o discurso publicitário, que deve ser sempre hiperbólico para se vender a si mesmo, e a introdução de Babic revisita alguns pontos significativos na produção de livros de saber desta arte (se bem que com um bom número de gralhas e descrições tão breves e impressionistas desses livros que nos levantam demasiadas questões). Mas o que importa é a colecção de ensaios, que procuram então revisitar questões transdisciplinares em torno de vários textos, focando sobretudo as grandes duas palavras-chave do título, dando assim continuidade a projectos antes iniciados por Joseph Witek, Hilary Chute, Mark McKinney, entre tantos outros.
Um dos aspectos importantes deste volume é que, sendo anglófono, procura vasculhar em territórios não-anglófonos também, tais como a banda desenhada francesa infanto-juvenil clássica e/ou pedagógica (Pif Gadget, Histoire de France, Astérix, etc.) e produções mexicanas pedagógicas. Todavia, essa celebração não pode ser exagerada , uma vez que o número de ensaios sobre títulos e/ou autores americanos é ainda superior, de personagens como a Mulher Maravilha e o seu papel quer na 2ª Guerra Mundial quer na afirmação do(s) feminismo(s), a séries como Sin City, The Walking Dead e Fantastic Four. E se há focos mais ou menos específicos, desde a representação do 11 de Setembro sob a perspectiva de experiências pessoais às negociações sobre a homossexualidade no género dos super-heróis, existem alguns poucos ensaios que tentam ser descritivos transhistóricos, quase englobadores, como o de Lethbridge e College sobre as mudanças de receptividade ao longo da história nos E.U.A.

Representing Multiculturalism in Comics and Graphic Novels. Carolene Ayaka e Ian Hague, eds. (Routledge) Possivelmente por estarmos a contrastar um projecto editorial como a McFarland, mais comercial e livre, e a Routledge, especificamente apta a um discurso académico, o qual deve ser entendido menos como um espartilho normativo do que uma exigência de rigor, encontramos aqui precisamente a atitude que deveria reinar nestes gestos. Nascendo das conferência organizadas pelo Comics Forum, os editores são claríssimos na sua introdução sobre o diálogo desejado ebtre este seu volume e aqueles que com eles podem ser coordenados, desde os projectos de Fredrick Luis Aldama, sobre os quais falámos aqui, e Transnational Perspectives in Graphic Novels (que não abordámos criticamente, mas se encontra na nossa biblioteca). Estamos, portanto, perante uma colecção variada mas extremamente organizada, o que se espelha na organização do livro. 

Este está dividido em cinco partes, “Histórias e Contextos”, “Representando a Diferença”, “Monstruosidade e Alteridade”, “Desafiando Ideias-Feitas” e “Estudos de Caso”. Além disso, considerando a distribuição dos seus quinze ensaios, com 5 deles sobre banda desenhada anglófona (dois dos quais britânica, e dois dos quais de identidades não-saxónicas) e os restantes sobre outras paragens (Roménia, Japão, África do Sul, França, Irão, Espanha, Israel, Canadá), e sempre procurando-se discussões transnacionais ou transculturais, compreender-se-á que o seu escopo é verdadeiramente alargado, cumprindo algo que o volume anterior apenas se arroga, mas não obedece. Isto não deve ser de modo algum surpreendente, de resto, uma vez que a questão “multicultural” é de facto o cerne de todos os ensaios: Ana Merino, por exemplo, debate a maneira como os muçulmanos eram representados em na bd clássica espanhola (El guerrero de antifaz), e Mihaela Precup também bebe de bd “do regime” para compreender as formas de representação da alteridade religioso-étnica. Existem vários estudos comparatistas, e outros que tentam compreender como uma identidade “alternativa” se constrói no interior de um território que procura outras “normas”, tal como o caso dos latinos, asiático-americanos, mulheres judaicas, etc., nos Estados Unidos e, abrindo a discussão, o caso bicudíssimo da representação racial/étnica em Robert Crumb...

Comic Book Geographies. Jason Dittmer, ed. (Franz Steiner Verlag) Tal como o volume de Babic, este tem início com uma frase problemática, ao chamar a área dos Estudos de Banda Desenhada “nascent”, isto é, emergentes, novos, etc. Mais uma vez, essa frase serve para “quebrar o gelo” e dar início a um diálogo, que na verdade está assente em bases bem sustentadas e conhecedoras da bibliografia existente, citando-se logo à partida uma frase quase programática de Charles Hatfield, quando este invectiva esta área a procurar “uma base conceptual estável que de forma alguma deve ser intercambiável com a disciplinaridade convencional”. De facto, a natureza, como se costuma dizer nos circuitos filosóficos, “sempre já” interdisciplinar, convida a que se beba de várias áreas para poder avançar as leituras de textos específicos a esta arte, mas Dittmer considera que a sua maior parte estão ancoradas em demasia em um número relativamente limitado de disciplinas (estudos literários, estudos culturais, etc.). Dittmer não deixa de ter razão, mas esquecer os encontros que existem envolvendo antropologia, medicina, mediologia, sociologia, estudos políticos, etc., não deixa de ser uma atitude menos completa. Seja como for, o objecto preciso deste volume é aproximar o estudo desta arte ao da disciplina da geografia, a qual deve ser entendida como uma área do saber interessada em noções como a da organização do espaço, a topologia, e depois as intersecções delas com as de representação política, temporalidade, psicogeografia, corporalidade e género, e questões de estruturas específicas e técnicas da banda desenhada.

Novamente há uma maior concentração em textos anglófonos, mas há uma preocupação particular em olhar tanto para “locais” concretos, como Portland, ou espaços mais alargados, a que se poderiam chamar de conceptuais, como os pós-coloniais ou os da memória. Alguns procuraram essas interrogações para depois devolver questões sobre estruturas mais propriamente literárias, outros para procurar aí pasto de considerações político-sociais e, finalmente, algumas que se revelarão particularmente vincadas sobre a “Teoria da Banda Desenhada”. Dividido em três partes, “Representação e performance de Local/Espaço”, “Corpos Políticos”, “Espaço e Teoria da Banda Desenhada”, com três capítulos cada, compreender-se-á de forma rápida essa distribuição de saberes.

O último ensaio, de Marcus A. Doel, por exemplo, intitula-se, e traduzo livremente, “Então, alguma teoria de banda desenhada por cortesia de Chris Ware e Gilles Deleuze, entre outros, Ou, uma explicação porque a banda desenhada não é uma arte sequencial”, apresenta-se desde logo sob uma forma electrificante e que tenta avançar uma nova forma de descrição estrutural e conceptual da banda desenhada, discutindo a linearidade e representação (supostas) do tempo na banda desenhada, a diagramatização da experiência, etc. e merece uma resposta ou consideração tão alargada quando o resto do livro, mas que suspenderemos aqui.

Seja como for, se já havíamos falado de volumes dedicados às relações entre arquitectura e banda desenhada, há aqui uma irmanação possível, ainda que esta questão da “geografia” procure escapar a uma simples abordagem de objectos concretos no espaço e se dedique mesmo a categorias a priori da realidade humana e desta forma artística em particular.

Graphic Details. Sarah Lightman, ed. (McFarland) A inclusão das capas nestes posts permitirão aos leitores lerem, onde pertinente, os subtítulos que melhor descrevem a matéria de cada livro. Este em particular é uma espécie de volume-companheiro de uma exposição que se encontra ainda em circulação internacional, com o trabalho de 18 autoras, a esmagadora maioria das quais judaico-americanas, que trabalham, de uma forma ou outra, no género autobiográfico, ou mais especificamente, no género “confessional” indicado, abrindo uma discussão particular para questões de representação do corpo, da sexualidade, das relações familiares, do trauma, etc.

O livro em si reúne desde ensaios históricos que tentam identificar a emergência do território e do trabalho mais ou menos concertado destes autoras (algumas das quais, como Kominsky-Crumb e Trina Robbins, iniciadoras do movimento feminista no seio dos underground comix do anos 1970) , até ligações a um território artístico mais alargado (por via da obra de Charlotte Salomon, por exemplo) e passando por olhares mais disciplinares.
Enquanto complemento, mas absolutamente importante e tornando este volume numa referência fortíssima, estão as sete entrevistas com algumas autoras, entrevistas que são relativamente curtas mas incisivas e dirigidas nas suas perguntas, tornando tudo muito coeso. E, finalmente,encontramos no final do volume perfis de todas as autoras da exposição, com breves anotações, bibliografias e um parágrafo descritivo, e exemplos das suas páginas, mais próximo da ideia de catálogo, mas ponto de partida para uma procura mais aconselhada e conduzida de todas elas.

Se nos permitem uma nota paralela à da leitura dos ensaios (já de si extremamente incompleta), é sempre fonte de surpresa, negativa, sem dúvida, a falta de elegância das capas desta editora, sobretudo por estarmos a falar de uma arte visual. Não é que as restantes sejam todas perfeitas, ou melhor (como o volume editado por Bibic), mas aqui não há qualquer justificação para a feiúra.

Hybridations. Laurent Gerbier (Presses Universitaires François-Rabelais) Apesar de falarmos mais de livros anglófonos, tal não significa que não haja uma produção constante e de qualidade noutros idiomas. Os leitores do LEBD seguramente que perdoarão a nossa ignorância a línguas como o alemão, no qual se tem produzido alguma coisa (e em algumas semanas esperamos dar conta de um volume com ensaios em alemão e inglês), ou a falta de acesso, distracção ou pura ignorância ao que tenha saído em Espanha, Itália ou outros países. Neste cômputo momentâneo, todavia, este é único volume de origem francesa de que falaremos, colectivo.

Como se depreende do sub-título, e se associar ao livro de Fiévre de que falámos anteriormente, a amplitude das relações de texto e imagem abrir-se-ão para além da banda desenhada, mas esta continua a ser um foco bastante importante, até mesmo nesta colecção, Icono-Textes, que já havíamos visitado antes.

O conceito da “hibridação” é o imo de todos os ensaios, se bem que ele possa ser entendido de modos relativamente distintos por cada autor, que conforme a natureza dos textos estudados ou dos instrumentos teóricos empregues ou métodos de análise aplicados chegarão a direcções diferentes. Partindo de noções aristotélicas, e tentando que não caia a noção num entendimento moralizante (de algo que não é “puro” nem “perfeito”, logo mal-estruturado), Gernier chegará à sua reapropriação pelo pós-modernismo, com Lyotard et al., num sentido de “questionamento” de estruturas, identidades e purezas culturais.

Encontraremos aqui textos de Thierry Groensteen e de Thierry Smolderen (publicado antes em inglês no livro de que falaremos adiante) sobre as noções deles mesmos de “hibridação gráfica”, mas que, apesar da coincidência de nomes, partem de pressupostos ligeiramente diferentes, e que haviam sido expostos (e esgrimidos) nos seus livros, respectivos, Bande dessinée et narration e Naissances de la banda dessinée. Os artigos destes autores são genéricos, mas se o segundo revisita a produção do século XIX, o primeiro volta a focar autores contemporâneos, e é fulcral que se leiam ambos em conjunto para compreender a profundidade e rigor dessa discussão. Um outro artigo, de Anthony Rageul, discute a banda desenhada na web, mas todos os outros artigos discutem outras disciplinas artísticas. Encontraremos a poesia ilustrada de William Blake, a obra de animação e não só de Émile Cohl, a obra artística de Alison Knowles, as ilustrações de Peter Sis, mas também a escrita multímoda de Balzac, ainda que acompanhada pelas vinhetas de Bertall (Petites misères de la vie conjugale). Mas a colagem é alvo de alguns ensaios (como um de Fresnault-Deruelle), assim como revistas de vanguarda, adaptações de filmes a fotonovelas (cinéroman) e documentários na web e, o mais surpreendente, as partes narrativas, com imagens, da revista White Dwarf, dedicadas ao universo diegético associado ao jogo de estratégia de miniaturas Warhammer.

Conforme se entenderá, a noção de hibridação aqui servirá para identificar negociações e tensões entre mais do que uma (aparente) forma de expressão autónoma e semioticamente pura, e nas quais surgirão produções de significado que não se preveriam antes, nessa suposta autonomia. Essas negociações encaminharão os autores para os questionamentos identificados por Gerbier, desde a iconoclastia intrínseca às práticas artisticas até ao carácter lúdico prometido, procurando-se identificar mesmo formas emergentes de expressão e criação, revelando-se como o estudo interdisciplinar poderá sempre, sempre, informar áreas contíguas.

The French Comics Theory Reader. Ann Miller e Bart Beaty, eds. (Leuven University Press) Quando abordámos o livro sobre Joann Sfar, demos a entender desde logo a existência de um volume anterior, que dera início a esta colecção. Esse volume é, decididamente, um dos mais importantes livros a ter saído o ano anterior e que poderá vir a tornar-se um daqueles instrumentos obrigatórios nas primeiras abordagens de Estudos da Banda Desenhada, se não mesmo à sua revisitação perene. Prometido desde longa data (e que possivelmente encontrará um volume “rival” num projecto de Neil Cohn, a sair no futuro), este volume reúne entre capas um conjunto de textos publicados entre os anos de 1969 e 2013, já que alguns eram inéditos à data (como o de Smolderen, v. acima), dos mais variados autores francófonos (franceses e belgas, entre os quais os flamengos Lefèbvre e Baetens), alguns dos quais se viriam a tornar referências obrigatórias ou pelo menos fundadoras de noções e conceitos que se revelariam fulcrais na construção teórica consequente.

Façamos uma descrição estrutural. Os editores e tradutores, Ann Miller e Bart Beaty, já de si importantíssimas referências neste universo de estudos, providenciam introduções diversas, desde a geral a todo o volume, contextualizando a emergência da riquíssimo panorama de estudos intelectuais em torno da banda desenhada no espaço francófono, e depois a cada secção, especificando melhor a importância de cada capítulo, autor, noção. Existem quatro secções, a primeira dedicada a “origens e definições”, muitas vezes as grandes vexatae quaestiones que se comportam como verdadeiros escolhos ao avanço dos estudos, mas ainda assim centrais para explicitar o ponto de partida de quaisquer desenvolvimentos, a segunda a “abordagens formais no estudo da banda desenhada”, o terceiro sobre “crítica francesa de banda desenhada” e a última intitulada “Lendo a indústria francesa da bd”. Foram seleccionados 25 textos, mas são menos autores, alguns dos quais se repetem, como é de esperar. Sem desejar criar qualquer tipo de hierarquia entre eles, existem alguns que são referências ainda actuais e obrigatórias, como Thierry Smolderen, Thierry Groensteen, Jacques Samson, Jan Baetens, Pascal Lefèvre, Harry Morgan, Benoît Peeters, outros que se encontram numa posição de referências específicas e históricas que importa jamais perder de vista, como Gérard Blanchard, Pierre Fresnault-Deruelle, Pierre Sterckx, Michel Serres e Luc Boltanski, e outros ainda que são grandes contribuidores para novas direcções (Pascal Ory, Erwin Dejasse, Philippe Capart). Dependendo da posição ideológica e disciplinar, encontraremos aqui nomes que são fundamentais de seguir, e outros que importa antes ler para criticar e nos afastar deles (Francis Lacassin, Serge Tisseron, sem detrimento aos contributos importantes para o campo, entre os quais uma questão de “expansão e abertura”, previstos nos textos escolhidos).

Alguns dos textos aqui presentes são mesmo “fundadores”, digamos assim, da área, e há páginas da mais acesa e arguta das leituras críticas, não estivesse Bruno Lecigne, Jean-Pierre Tamine e Harry Morgan aqui representandos com textos de leitura analítica (o último, curiosamente, com Manuel Hirtz, em torno de Jack Kirby, demonstrando-se que a francofonia não é impeditiva de um escopo alargado).

Seguramente que se voltará a este volume neste mesmo espaço em breve, com outras perspectiva mais arreigada e completa, mas também é sem grandes dúvidas que se encontrará neste volume um ponto de regresso constante aos investigadores futuros, sobretudo aqueles que não lêem francês, deixando de haver uma desculpa para a falta de acesso a estes escritos e esperando-se que o diálogo internacional, a nível teórico, possa finalmente ter lugar efectivo.

Nota final: agradecimentos às respectivas editoras, pelas ofertas dos livros. 

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