21 de janeiro de 2015

Peter Pontiac. 1951-2015.

Obrigado, Morte, não tiras férias.

Morreu Peter Pontiac. Não sendo propriamente um autor conhecido do grande público, Pontiac era uma lenda do underground dos anos 1970-80 da Holanda, que rapidamente ganhou fama no circuito internacional da mesma tribo, sobretudo graças à El Víbora, se não erramos. E em Portugal tinha muitos fãs. A sua prestação na criação de bandas desenhadas curtas e médias dedicadas ao sexo, drogas, sexo, drogas e rock'n'roll (e punk, garage, trash, etc.) era imparável e, mais tarde, daria início a uma extremamente profícua - e quiçá materialmente mais recompensadora - carreira na ilustração (veja-se o site). Se o seu traço grosso e negro, em vinhetas ocupadíssimas e frenéticas se aproximava, por um lado, de Robert Crumb, Moscoso e outros valores do underground comix norte-americano de primeira geração, nas faces e expressões há uma dimensão mais leve, jovial, icónica, e tudo isso viria a ser burilado e aveludado ao longo dos anos. Sendo amigo e colega em muitos projectos editoriais com Joost Swarte, sobretudo na juventude, não se integraria no mesmo tipo de circuito desse autor mais famoso, em parte graças às suas opções pessoas, living on the edge. Além disso, bastas histórias eram protagonizadas por avatares da sua própria pessoa, como o "Mr. Me". 

Quase todas essas criações seriam reunidas várias vezes em volumes imensos, publicados em holandês, mas muitos dos quais contendo algum acesso em inglês. Trabalhando directamente para a livraria Lambiek, em Amsterdão, durante muitos anos a livraria especializada em banda desenhada, e associada à Oog & Blik, a "Fantagraphics das tulipas", e ainda hoje paragem obrigatória às peregrinações, era dele um mapa das ruas da capital holandesa assinalando essa pequena Meca, retratando de modo sui generis a cidade. E do outro lado, um retrato revelador da cultura no interior da loja, exacto até ao mais ínfimo pormenor, se exceptuarmos os clientes distintos, evidentemente...

Um exemplar desse mapa está algures guardado nas pilhas do LEBD. Aos 16 anos, deambulando pelas ruas de Amsterdão, conhecendo já algumas referências fora da "bd comum" mas desconhecendo ainda a existência da Lambiek, foi um acaso e um olho atento que apanhou a ilustração do mapa e, graças a este, que nos colocaria o nariz no no sítio certo. E ainda nos recordamos do que comprámos: os dois números de Big Numbers, um título inconfessável e um outro do tal Pontiac. Começara aí um processo longo de sedução, que iria sendo alimentado aos poucos com outras visitas e cruzamentos. 

Em 2000, depois de anos de labor intenso, Pontiac publicou o que poderá ser considerada a sua grande obra: Kraut. É um livro dedicado ao, ou melhor, sobre o pai, que havia sido um soldado nas SS quando da Ocupação Nazi da Holanda, correspondente de guerra e que viria a desaparecer em 1978, na ilha do Curaçao. Em mais do que um aspecto foi comparado ao Maus, de spiegelman, mas a distância entre o filho e o pai era incomensurável e inegociável. Em termos gráficos, também, eram dois animais bem distintos: Kraut é denso de texto, documentação transcrita, e uma dimensão muito mais ensaística na tentativa de se aproximar do fantasma. Contém variadíssimos documentos (na esteira de Maus, é certo, mas elevando essa presença), inclusive desenhos infantis do pai, como nesta página. 

Por volta de 2010 estivemos envolvidos num projecto editorial que não passaria de boas intenções, e um dos livros que havia sido discutido, e até mesmo dado início à maquinaria para contratos e traduções, havia sido precisamente Kraut. Graças a isso dar-se-ia início a um processo de correspondência, troca de ideias e anedotas, que aumentaria o grau de afinidade e admiração. Em 2012, a propósito da exposição central do FIBDA sobre autobiografia, tivemos a oportunidade mais uma vez de o contactar sobre assuntos concretos, garantindo que estariam expostos trabalhos dele em Portugal, mas infelizmente ele próprio não nos pôde visitar. Finalmente, em 2014, no Stripdagen Haarlem, na Holanda, cruzámo-nos pessoalmente. E pudemos confirmar a ideia que já havíamos formado ao longo de tantos anos... 

Perdeu-se um dos últimos punks gentlemen .

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