12 de setembro de 2014

Le muret. Céline Fraipont e Pierre Bailly (Casterman).

A primeira surpresa deste livro são os nomes que surgem na capa. Seguindo há algum tempo, ainda que em silêncio neste espaço, a obra da escritora Fraipont e do artista Bailly sob a forma de um dos melhores títulos da actualidade de banda desenhada infantil, Le petit Poilu (sem matéria verbal, com histórias lineares e simples de seguir, são perfeitas introduções à linguagem da banda desenhada para crianças que ainda não sabem nem ler nem ler banda desenhada), o seu surgimento numa colecção que usualmente versa temáticas e estruturas mais maduras levava de imediato a algum gau de curiosidade. Uma primeira consulta confirmava a diferença de direcção do trabalho de ambos. A sua leitura atenta reservava ainda mais complexidades. (Mais) 

No que diz respeito à trama narrativa, Le muret não deixa de ser algo singelo e sem complicações. Observamos um período mais ou menos concentrado – um período escolar? Um inverno? Um mês? – na vida de uma adolescente, Rosie, naquela curva apertada da entrada, não tanto no mundo adulto, mas num mundo que abandona rapidamente a infância. Existem factores que aceleram essa jornada, acima de tudo a ausência da mãe (separada do pai, segue um novo namorado algures no estrangeiro, surgindo somente sob a forma de postais) e a distância do pai (sempre fora em trabalho). As suas relações, com a melhor amiga, um primeiro namorado, um novo mundo musical, as densas zonas nocturnas da idade, alguns abismos, pontuam este período e fazem com que ela se transforme entre as capas do livro. Chamar-lhe Bildungsroman não virá a despropósito. Há um momento em que ela própria se pergunta, sob a forma de legendas, porque é que se tornou tão diferente do que era. Acompanhamos essa transformação, e acreditamos compreender essas razões, mesmo que sejam difíceis de traduzir em palavras ou causas unívocas.

Se Rosie é a protagonista, ela não é um objecto totalmente isolado. As formas de aprendizagem a que se vê obrigada são tanto pautadas pelas pessoas com que se cruza e convive como com as ausências. Isto é, não são essas ausências indiferentes, e são por se verificarem que elas exercem algum peso na sua vida. Algumas conduzidas pelas próprias pessoas (a mãe, o pai), outras por decisão de Rosie ou forçadas pelas circunstâncias: o afastamento progressivo de Nath, que “cresce” mais lentamente que Rosie, é a principal perda da primeira metade do livro. Mas há depois um outro ganho, sob a forma de um jovem, Jo, que parece viver sozinho, com todo o romantismo que isso implica. Uma espécie de autonomia desejada, uma rebeldia que se admira, a presença num outro mundo que parece, a um só tempo, apelativo e perigoso.

Existem caminhos mais ou menos óbvios seguidos por Rosie, e que fazem parte dessa negociação com a maturidade que se aproxima: o álcool, as saídas nocturnas, o baldanço às aulas, pequenos actos de rebeldia, alguns furtos, parvoíces genéricas. O consumo de álcool ganha contornos preocupantes ao ponto de ser tornar a “crise” do livro, aumentando-lhe a carga dramática de uma forma mais ou menos previsível.

Mas um outro caminho, que é mais ou menos explícito, ainda que de um modo calmo, é a dimensão musical. Estando no final dos anos 1980, a lenta descoberta de um círculo determinado da produção musical – e que se poderia chamar post-punk - da época é decisiva, não apenas como simples rebeldia contra aquilo que os adolescentes entendem ser a normatividade dos seus tempos, mas por essa mesma cultura providenciar de alguma forma uma cartografia que os poderá ajudar a navegar por entre todas as escolhas que têm de tomar. The Cure, Mano Negra, Crass, Suicidal Tendencies (foi “Institutionalized” uma espécie de hino?) The Ramones, Rapeman, Sonic Youth, estão no caminho de Jo, e através dele e dos amigos, do de Rosie, tal como terão estado no caminho de muitos outros adolescentes da época, quem sabe de alguns dos leitores do lerbd (confessemos que algumas destas bandas estavam no nosso caminho sob a forma dos primeiros discos de vinil, as cassetes de ferro II, os temas de conversa na rua). Acima de tudo, serviam de blocos que nos iam afastando de uma cultura mais genérica, normalizada, veiculada pelos canais habituais e contra os quais se iam construindo instrumentos, que significavam um crescimento acelerado e quase consciente.

A rebeldia que a música providencia, ou pelo menos os espaços de defesa do mundo “normal”, são centrais nesta história em que Rosie mergulha com fascínio e amor, ao ponto de lhe vislumbrar os limites, ou as costumeiras vascas. Não estando perante uma tragédia, esse gosto amargo serve para que Rosie “acorde” e tente re-negociar o seu papel, terminando num equilíbrio para si mesma na economia familiar, escolar, social. O preço mais trágico é pago por Jo, mas quase vem por acaso, e não por uma intrínseca aproximação dos abismos levemente visitados.

Pois na verdade, deve notar-se como a narrativa se mantém no interior de um intervalo mais ou menos burguês e que quase nunca mergulha em perigos profundos. Não há sinal da “vertigem das drogas pesadas” – fuma-se um charro, snifa-se uma merda qualquer, mas isso é apanágio de todas as experiências - , a violência não é jamais atroz, a sexualidade é consequente, concedida e ternurenta, mesmo os afastamentos entre as personagens é desdramatizado, quer pelo esgotar de uma amizade quer por uma interrupção trazida pela morte. Ainda que se pudesse eleger essa morte como o cerne do livro, ou até mesmo o “alcoolismo juvenil” como tema central, a verdade é que a economia do livro não é tecida em torno desses centros, não há uma procura por transformar Le muret num livro “significativo”, “socialmente relevante” ou coisa que o valha. Até pode acontecer que ele seja aproveitado como tal, mas isso seria passar-lhe ao lado. Até o próprio título remete não apenas para uma potencial carga simbólica (de separação, de distância, de um obstáculo no meio do caminho) mas acima de tudo para o objecto concreto, de canto abandonado na teia urbana onde se pode conquistar um espaço mínimo, mas pessoal, singular, e quase intransmissível (pois, deseje-se, e pode ser partilhado, como é o caso de Rosie e Jo.

Enraizado num subúrbio qualquer francês, também se poderiam imaginar estas pequenas navegações nocturnas e negociações da adolescência na Reboleira, em Santo António dos Cavaleiros, em Almada, em Linda-a-Velha. Atravessavam-se essas paisagens, dividiam-se as tribos, e havia quem fosse longe, quem regressasse ao conforto, quem atravessasse sem mossa, quem ficasse pelo caminho. Não seria uma novela de crescimento se Rosie não regressasse a um ponto estável, transformada mas confirmada, até certo ponto, feliz.

Le muret acaba por se tornar um livro tranquilo, melancólico e ternurento ao mesmo tempo. Não se tratando de uma “obra-prima” instantânea, será decerto um dos melhores títulos publicados ultimamente na colecção Écritures, e recorda alguns dos livros que foram cozendo a lume brando dos anos 1990. Por outro lado, vem aliar-se a todo um conjunto mais ou menos coerente de narrativas longas que versam as dores da adolescência, e os quais têm angariado alguma atenção crítica substancial, desde Ghost World a Skim, passando por Blankets, O local, ou mesmo Fish. Se os adolescentes sempre estiveram presentes em tiras e comic books como forma de atrair leitores mais jovens (Terry and the Pirates, Batman & Robin), estas outras obras exploram de uma forma mais moldada em termos psicológicos e políticos a especificidade dessa(s) experiência(s).

Pierre Bailly, em Poilu, tem um traço fechado, estilizado, legível e directo. Aqui demonstra que tem outros instrumentos e processos de trabalho na carteira, sobretudo uma capacidade em flutuar entre estilos, pequenos graus de diferenças mas que são expressivos o suficiente para veicular uma emoção diferente, uma intensidade variada. Se aqui as suas capacidades de estilização são empregues sempre num extremo – o preto-e-branco ajuda a que as personagens tenham uma presença na página mais expressiva que representacional, a representação dos narizes como uma mancha negra transforma-os em estranhas máscaras -, Bailly joga com todos os instrumentos possíveis para moldar a construção psicológica e emotiva das personagens: variedade na composição das páginas, na distância, nas perspectivas e ângulos, assim como os jogos de coordenação com a presença ou falta de matéria verbal, que tanto existe em diálogo como legendas narrativas de uma Rosie mais madura e futura aos acontecimentos. Os flashbacks da infância de Rosie e Nath parecem ser desenhados num registo bem diferente, próximo daquele traço ultra-plástico e brilhante de Gilbert Hernandez, especialmente nos seus títulos mais infanto-juvenis. A fase final do livro, já depois do ressurgimento de Rosie após a sua própria “longa noite” parecem dar espaço aos brancos e a enquadramentos atentos à natureza e a paisagens mais salutares e abertas. Mas quase todo Le muret fecha-se em copas em ambientes fechados e nocturnos, para melhor concentrar a atenção do leitor no que vai fervendo na protagonista.

Não existem quaisquer informações ou pistas que nos permitam vislumbrar sequer elementos autobiográficos neste projecto, mas apenas uma intuição nos leva a pensar que haverá uma sombra de experiência da escritora, ou dos autores, sob a estrutura da intriga. Se isso não existir, pelo menos existirá a presença de uma série de elementos que seguramente fará com que alguns leitores, mais ou menos nas mesmas circunstâncias geracionais, se sintam espelhados. E, ao re-encontrarem alguns dos espinhos que nos esperavam na adolescência, talvez nos possam ajudar a compreender os espinhos que se erguem no caminho dos próximos adolescentes.

Nota final : agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

1 comentário:

Sara disse...

Certamente é o meu graphic novel favorito e foi interessante ler a sua opinião.