22 de abril de 2014

Astronauta. Magnetar. Danilo Beyruth (MSP/Panini)

Tal como havíamos discutido em relação a Laços, não podemos tintar, a partir da perspectiva criada pela obra hodierna, a produção anterior. Por isso discordamos profundamente com a ideia de que as histórias do Astronauta seriam aquelas mais “adultas” da produção MSP, mesmo no seio dos gibis. Isto não significa que não aceitemos existirem, entre as histórias, diferenças que insuflem vários graus de maturidade, complexidade, continuidade entre as histórias, camadas de intertextualidade que enriqueçam a experiência da leitura, etc. E o facto de os adultos poderem tirar prazer de uma obra infanto-juvenil não é um argumento em si mesmo, pois tudo depende do tipo de prazer que se retira. Haverá seguramente uma diferença fundamental entre compreender as camadas intertextuais “adultas” presentes em Astérix, perceber a subversão dos propósitos superficiais em The Magic Roundabout (versão inglesa) ou Ren & Stimpy, ou aproveitar o embalo de entretenimento e humor simples de uma BD/HQ infantil. Pensamos ser este último o caso da MSP, e não outra configuração.(mais)
Com a excepção das personagens centrais da Mônica, há aparentemente uma grande incidência de atenção para com o Astronauta, se bem que a esmagadora maioria dos autores transforme a sua odisseia numa qualquer metáfora para o próprio universo criativo de Maurício, ou para uma qualquer vertente emocional-ecológica.

Todavia, é possível identificar estratégias diferenciadas nas histórias. Tomemos como exemplo uma história em particular, repetindo o que dissemos num dos textos anteriores: uma história sem título, passada na Amazónia, publicada na revista Mônica no. 23, de 1972. Apesar de termos acesso à edição original, é mais substancial ainda a nossa argumentação se nos reportarmos à edição comemorativa de 2011. Cada volume desta colecção relançou os números correspondentes de um conjunto de revistas, as quais haviam sido publicadas originalmente em datas diferenciadas: a Mônica 23 em 1972, a Cebolinha 23 em 1974, a Chico Bento 23 e a Cascão 23 em 1983, e a Magali 23 em 1990. Ou seja, e melhor ainda, cada volume dá-nos acesso a momentos diferentes dos trabalhos produzidos no seio daquela companhia e “estrutura de imaginário”. Ora a história a que nos referimos do Astronauta mostra, em contraste com todas as outras histórias das revistas citadas, diferenças substanciais a nível da camada visual.

Quase todas as histórias com as outras personagens (Mônica, Cascão, Chico Bento, Zum & Bum, Tina, Panidinho, Horácio, Magali, Humberto, Mingau) seguem as formas de estruturação, perspectiva e preenchimento interno das vinhetas idêntico: um plano paralelo à linha de horizonte; linhas diagonais dos passeios ou edifícios somente quando as personagens se movimentam de um lugar para outro; uma distância das personagens “teatral”, permitindo planos que lhes apanham o corpo inteiro, com apenas pontuais aproximações a planos médios, e grandes planos muito esparsos; cenários extremamente reduzidos a uma cifra (“muro”, “muro de tábuas”, “casa”, “pedra no solo”, “relva”, etc.); cores planas, não-naturalistas e cambiantes de vinheta para vinheta, mas sem significado próprio.

Mas esta em particular tem estratégias muito diferentes: picados e contra-picados quase radicais, maior pormenorização no desenho anatómico; escolhas de composição e “quebras” dos limites das vinhetas salientes; alto trabalho de pormenorização do cenário natural; construção de planos estratificados numa linha de horizonte mais profunda; uso de escorço… Tratando-se de uma história criada pela equipa de jovens que trabalhava nas tiras desta personagem para a Folha de S. Paulo, haveria aqui a vontade de experimentar um sopro novo. Na verdade, essa história em particular é até algo básica, tola e mal estruturada, mas visualmente aponta para uma tentativa de abrir o leque das opções, que apenas agora parece cumprir-se não apenas na vontade editorial como no seu cumprimento efectivo.

De resto, seria necessário fazer um estudo aturado de cada personagem, revista, época, formato, associado necessariamente ao nome real dos artistas (como havíamos aventado a propósito de Laços) para conseguir chegar a conclusões mais consolidadas dessa análise. Todavia, existem de facto estratégias várias a serem empregues em qualquer momento. Por exemplo, numa história simples mas quase-absurda do Bidu, em que ele contracena com um gravador, o cão é desenhado no seu estilo regular, ao passo que o gravador parece viver num registo bem diferenciado, de ilustração de manual, pormenorizado, de contornos mais finos, mais sombras, e mais realista.

Aproximemo-nos, porém, do centro gravítico do livro presente. Os “magnetars” são novos modos de descrição das estrelas de neutrões, ou melhor, novas manifestações que dão conta desses objectos, cuja magnitude dos campos magnéticos são de tal modo extremos que parecem reescrever alguma da compreensão do cosmos. Não temos a veleidade de compreender sequer uma ínfima parte das suas implicações, mas se neste momento estas estrelas pequenas de ultra-densas ainda se revestem de algum “mistério”, é na mesma ordem que os buracos negros há umas décadas atrás, e antes disso todo e quaisquer elementos que foram sendo descobertos, detectados e descritos ao longo da longa, dolorosa e complexa curva de aprendizagem da astrofísica, que implicou igualmente uma alteração dramática da cultura humana, sobretudo no que dizia respeito à literal cosmovisão e à posição do ser humano nesse mesmo espaço (a nova série Cosmos: A Spacetime Odyssey é um excelente instrumento de reaproximação a essa realidade). Seja como for, estes objectos parecem poder contribuir para mais um passo ao entendimento dos mecanismos necessários para a teoria unificada.

Claro que, para a ficção, usualmente associada a géneros que têm de se mover em aspectos espectaculares e dinâmicos para tornar a história interessante, todos os seus aspectos dramáticos são exagerados. À medida que vamos compreendendo estes objectos e alguns deles guardam poucos “segredos” (já raramente se fala do “lado escuro da lua”, que é um erro), é necessário procurar objectos mais “exóticos”.

Se nos lembrarmos daquele axioma da ciência, que parece poético (e pode sê-lo, pois porque não ancorar a poesia na mais banal e palpável das realidades?), de que nós mesmos somos pó das estrelas, uma vez que os átomos que nos constituem foram fundidos nas estrelas.

A obra do autor já havia demonstrado as suas capacidades em criar ambientes diversificados para que servissem de palco dinâmico a acções de “alta cilindrada”, como no caso do seu super-“herói” Necronauta, cujos livros são compostas de curtas histórias mostrando-o em várias aventuras mas consequente e gradualmente expandindo o seu “universo”. Ora, alguma da estratégia da ambiguidade e elipse narrativa é usada em Magnetar, tanto deixando os leitores providenciarem mais informações extra-textuais a partir das memórias que terão das leituras do Astronauta original (infantil) ora projectando possibilidades de futuro desenvolvimento deste Astronauta (adulto), o que de resto se concretizará no segundo volume já anunciado.

Se a história em si é concentrada, uma vez que o protagonista se encontra sozinho na sua missão cósmica, ainda que isso permita – pela alucinação, sonho, memória – que ele “fale” com todas as pessoas que criam a sua rede familiar, e procure entrar num processo de introspecção que re-metaforiza a personagem (“um esqueleto dentro de um ovo, por toda a eternidade” é um grande achado enquanto descritivo da personagem), a trama em si é relativamente focada num objectivo que se desdobra. Estudar o magnetar de perto, cair num acidente, escapar do magnetar. O acidente é apenas uma desculpa para que possamos mergulhar, com o Astronauta, na sua mais profunda humanidade que, compreendendo ser sempre solitária, pode não cair no niilismo e a companhia dos outros seres que ama.

O autor já participara na antologia MSP + 50, com uma história em torno da turma do Penadinho, mas até pela matéria e as personagens, há um contraste curioso entre estes dois gestos. Onde a curta história da turma macabra era divertida e em cores glaucas, esta outra é algo mais grave, ao passo que as cores, de Cris Peter, optam por soluções mais expansivas, iluminadas, e extremamente elegantes e justas para esta história. Estes descritivos poderiam associar-se a todas as dimensões do livro, uma vez que as pesquisas do autor em termos de figuração, composições que balançam entre o retórico e subsumido à acção, às repetições claustrofóbicas ao spread que dá a ver uma ideia parcial da imensidão do universo onde o protagonista se perde, lhe permitem uma grande justeza narrativa.

Como todos os volumes, no final são dedicadas algumas páginas aos processos de criação dos autores, revelando esboços, estudos de paginação, projectos de capa, algumas ideias alternativas de desenvolvimento, assim como um breve suplemento sobre a história da personagem, desde a sua criação original nas mãos de Mauricio de Sousa às várias transformações que foi sofrendo ao longo de décadas. Ver algumas das capas alternativas de todos estes projectos, encontrando os trailers para os passos futuros, e imaginando que outras escolas poderão surgir, esta pode de facto ser uma via muito interessante de desenvolvimento de trabalhos futuros de banda desenhada no Brasil, um curiosíssimo encontro, com alguns elementos inéditos, de criatividade autoral e individual e desdobramento no interior de uma máquina empresarial de grande sucesso.

Nota: agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas posições e/ou leituras responsabiliza terceiros. 

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